domingo, 30 de março de 2014

Incidente ou acidente coincidente?



Almoçávamos juntos hoje, como em muitos domingos e, em meio a muitas conversas veio uma pergunta que gerou uma discussão muito legal. Minha irmã nos contava que, num desses eventos cotidianos, bateu a cabeça. Nada grave, que inspirasse cuidados ou que trouxesse algum tipo de preocupação daquelas que movimentam a família toda. No entanto, a dúvida que ela trouxe para nós a partir desse evento movimentou a família, sim. Ela queria saber se havia sido um acidente ou um incidente.

Uma diversão isso, porque cada um de nós vai se colocando e, numa espécie de brainstorming, várias ideias vêm à tona e se misturam aos sabores ali desfrutados. Depois de certas incertas hipóteses de sentido, minha mãe não teve dúvida: saiu da mesa e encheu sua mão com um dicionariozinho, uma miniatura de Aurélio. Pouco adiantou, porque não tirava nossa dúvida. Primeiro, porque à palavra "acidente" estavam associadas intercorrências de maior ou de menor gravidade. Ficou pior depois que associou à palavra "acidente" à de depressão em pistas ou a eventos que tiram a normalidade. Como se não bastasse, à palavra "incidente" a ação de incidir.

Em sua origem, a palavra "acidente" (do latim accidens, -entis) designa um tipo de acontecimento fortuito mesmo, casual, mas que resulta em algo infeliz. Em nossa cultura hoje, essa palavra designa estas duas coisas: algo que sai do normal casualmente (como uma música tocada dentro de outra = música acidental; ou um popular "acidente de percurso" = pequena intercorrência) e algo que está associado à infelicidade e, em geral, à tragédia. Um grande engavetamento no trânsito, que resulta em dezenas de mortes não é um incidente, mas um acidente.

Por sua vez, a palavra "incidente", do verbo incidir (que também vem do latim in+cadere) significa algo que sucede ao acaso, algo que sobrevém, alguma coisa e cai dentro. A luz do Sol sobre incide nós -  ninguém chama isso de acidente. Os juros incidem sobre determinado preço, uma lei que incide sobre determinado caso... - esses fatos não são necessariamente acidentes. Veja-se, por exemplo, a existência de outra palavra cognata a essa. Se é uma coisa só que incide, trata-se de uma incidência. Se é mais de uma, trata-se de uma "coincidência".

O fato é que à palavra "acidente" estão associados os acontecimentos inesperados, fortuitos cuja consequência traz infelicidade e tem uma proporção muito além do normal. Para pegar dois extremos, vou me referir ao seguinte: uma turbulência que se enfrenta num vôo é um incidente. A queda de um avião, um acidente. A confusão na designação ocorre porque, dependendo das intenções de quem relata, o que é totalmente incidental para uns pode ser um verdadeiro acidente para outros. O inversão não é normal acontecer.

Tem-se claramente a ideia de que um acidente não é um incidente (a diferença entre a queda do avião e a turbulência), porém não é claro quando um incidente é ou não um acidente. Dessa confusão vem o famosíssimo ditado segundo o qual "pimenta nos olhos dos outros é refresco". Ou, em outras palavras, o que é acidente para um pode ser incidente para outros. O modo como um e outro veem o mesmo fato não é coincidente.


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