terça-feira, 4 de março de 2014

Fé no plural



"Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar" é um conhecido verso de Gilberto Gil, que acabou servido de base para o samba de enredo da Escola de Samba campeã do Carnaval de São Paulo em 2014. Eu, que não sou de ficar vendo desfile pela TV (prefiro ver ao vivo), parei hoje para ver o final da apuração dos votos. Fiquei muito contente porque o Mestre-Sala (Emerson Ramirez) é um conhecido da gente e já é o terceiro ano seguido que a Mocidade vence o Carnaval por aqui, de modo que ele e Karina, a Porta-bandeira, merecem todo o reconhecimento que pudermos dar.

O enredo abordava prioritariamente a fé. E foi interessante como o famoso Carlos Tramontina, experiente jornalista da Globo, com quem já tive o prazer de estar, empolgado com o resultado apertado que só se desenrolou no final, disse que a vitória da Escola teria sido resultado de muita fé. Mais que isso, disse que a Escola teria feito um desfile que colocou "muitas fé" na avenida. Logo percebeu e tentou corrigir. Escapou por pouco do "muitas fezes" e, depois de um rápido silêncio, mandou o "muitas fés".

Há quem diga que a palavra fé faz um plural simples, como qualquer outra palavra terminada em vogal. Tomemos uma palavra semelhante por ser monossílaba e por terminar em E: pé. Plural = pés. Logo, nenhum problema ao pluralizar fé em "fés". Outros há que não partilham desse raciocínio simples e preferem dizer que a palavra fé diz respeito sempre a apenas uma fé. Esses mesmos senhores dizem que fé também não deve ir ao plural por designar uma realidade incontável. Eu gostaria de conversar com um desses senhores lhes perguntar se a palavra crença (sinônimo para fé) também designa realidade incontável, porque não temos a menor dúvida ao pluralizar "crenças".

Polêmicas à parte, o plural pode ser mesmo uma coisa complicada em qualquer língua. Na nossa, por exemplo, palavras que já são escritas como se estivessem no plural: pires, ônibus. Há até nomes próprios que já são pluralizados: Minas Gerais, Andes, Os Lusíadas, Estados Unidos. Aliás, é interessante esperar o que uma República como Estados Unidos vai fazer em relação à crise na Ucrânia. Ou, ainda, ver o que os Estados Unidos vão fazer em relação à crise na Ucrânia.

Os aumentativos também oferecem dúvida. Entre as palavras mais utilizadas, nem tanto, como pão, mão e leão. Dificilmente alguém erra: diz facilmente pães, mãos, leões. Mas as pessoas enfrentam alguma dificuldade quando vão colocar no plural uma frase como: "Precisamos limpar o corrimão hoje". A mesma dificuldade, as pessoas têm quando vão pluralizar nomes compostos. Muitos professores ainda titubeiam quando vão colocar no plural expressões como "palavra-chave", "situação-problema"... realmente, um problema.

Diferente do uso de palavras como "costas" - sempre no plural para se referir à parte posterior do nosso corpo, outros plurais enfrentam uma resistência enorme por parte das pessoas. Quem de nós aceita, assim, de bom grado, que, embora, digamos "calça", o esperado é "calças"? Quem de nós admite com tranquilidade utilizar uma frase com a palavra "óculos" pluralizada com adjetivo. Assim: "Mãe, por favor, pegue meus óculos escuros". Vamos lá: é preciso ter fé no plural.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre aqui sua pergunta