domingo, 23 de fevereiro de 2014

A força da figura e do furacão



Por sorte, sempre temos a possibilidade de criar novas formas de dizer as coisas, de modo que elas nem sempre são ditas em seu sentido literal, ao pé da letra, seu sentido denotativo. A riqueza da linguagem (principalmente, mas não só) poética é que traz a possibilidade da linguagem figurada. Entre muitas, a metáfora é a figura-mãe. É ela que me propicia dizer coisas como "os olhos são o espelho da alma". Ou, para quem quiser mais e mais metáforas, dizer coisas como diz o Chico Buarque na música "Pedaço de mim". Só para exemplificar: "saudade é o revés de um parto; é arrumar o quarto do filho que já morreu". Dificilmente alguém definirá melhor esse sentimento de perda, de ausência, isto é, a incômoda presença da ausência. (Opa! Fiz um paradoxo)

Da metáfora decorrem muitas outras figuras. E há figuras de todo tipo, tantas, que no século XIX, havia centenas de figuras - excesso que quase levou a Retórica ao limite mínimo e estilístico pela exagerada importância dadas às figuras. Bom orador era o que esbanjava das figuras. Felizmente, no início do século XX, filósofos, como Chaim Perelman, repuseram a Retórica em seu lugar de honra, sem deixar, no entanto, de observar as figuras, mas vendo nelas poderosos recursos argumentativos. E é isto que elas são: recursos de linguagem capazes de levar o ouvinte/leitor ao convencimento, à persuasão, à inevitável adesão à ideia que lhe é proposta. Uma figura bem colocada arrebata o pensamento. (Opa! A repetição é figura)

Note-se a figura: "o universo engolido por um furacão". A ideia é tão forte, que parece uma grande catástrofe que nos faz imaginar todo o mundo sendo arrastado para o interior de um furacão. Uma poderosa figura, sem a menor sombra de dúvida. No entanto, se tirarmos um pouco o pé do freio e olharmos melhor para a paisagem da linguagem que passa por nós, veremos que um furacão é algo infinitamente minúsculo perto da imensidão do universo. Nesse sentido, o que essa figura expressa é impraticável, inexequível. Do ponto de vista denotativo é uma bobagem. Mas conotativamente é uma figura que arrasta o pensamento e o convence com uma força maior que um furacão, maior que o universo. (Opa! Construí uma: hipérbole).

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O imperfeito participa do passado?



Quando Renato Russo canta "Acho que o imperfeito não participa do passado", evidentemente ele está fazendo um jogo de palavras, típico daqueles que ele sempre fez muito bem. Está claro que o (pretérito) imperfeito participa do passado. Ocorre que a ação expressa pelo pretérito imperfeito expressa uma ação habitual no passado, que pode ou não ter deixado de acontecer no presente. Em nossa língua, especialmente a conjugação de verbos na terceira pessoa terá terminações bem marcadas, a saber: -ava (para verbos de primeira conjugação, como "cantava") e -ia (para verbos de segunda e terceira conjugações, como "escrevia", "ouvia").

Embora saibamos muito bem distinguir os dois pretéritos nas falas cotidianas, quando temos de refletir sobre eles, deparamo-nos com alguma dificuldade. Os alunos, em geral, não caminham bem pelas estradas que distinguem esses dois aspectos verbais. De fato, é tudo passado, mas há uma sutileza que os diferencia. Quando alguém diz que cantava bem, quer significar que, em algum tempo passado, ele executava bem e com frequência a ação de cantar. Já quando colocada no pretérito perfeito, a ação de cantar será dada como encerrada, uma ação completamente realizada. Assim, se diz que alguém cantou. Ponto.

Mais sutil ainda é a diferença entre o pretérito perfeito e o mais-que-perfeito. Primeiro porque é muito estranho ouvir a expressão "mais-que-perfeito"; parece um paradoxo, pois se existe algo mais que perfeito, o perfeito não era completamente perfeito. Vamos devagar. A expressão "mais-que-perfeito" sempre vai remeter a uma ação completamente acabada anteriormente a outra que também está completamente acabada. Era comum a conjugação "cantara, cantaras, cantara, cantáramos, cantáreis, cantaram". Note-se a falta de acento (cantara X cantará), que torna a palavra em paroxítona. Atualmente, em vez de dizer "cantara", os falantes de Português no Brasil têm optado pela forma composta: "tinha cantado".

Em "eu tinha cantado antes de você chegar" expressam-se duas ações totalmente acabadas, de modo que, por ser anterior à ação de "você chegar", a ação "tinha chegado" está no pretérito mais-que-perfeito. Por fim, vale chamar a atenção aqui para o fato de muita gente não sabe o significado de pretérito. Associa-se, muito corretamente, seu sentido ao de passado. E é bem isto: pretérito é aquilo que não foi preferido. Quando se prefere algo, esse algo é trazido para frente. Por consequência, o que ficou para trás, foi preterido. Assumiu a condição de pretérito (passado).

Bom: é isso. 
Ao menos tinha sido isso.
Ou era isso. 
Foi isso.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A sintaxe da vida



Um dos itens da gramática de que mais gosto é o da sintaxe, justamente porque para mim sempre lembra uma metáfora de como funciona a vida: em relações. Tudo neste mundo está relacionado. Quem conhece o chamado "efeito borboleta" sabe bem.

Desde que se conhece a magia do verbo em uma língua, seja ela qual for, abre-se o portal para que se tome conhecimento de um imenso emaranhado de relações, uma série de feixes conectados ora pelo cordão da lógica ora pelo frágil barbante da convenção, criada e mantida em razão das mais diversas justificativas - muitas vezes injustificáveis.

É pelo verbo que se escuta o pulsar da língua, como se ele fosse o coração, de onde é bombeado todo o sangue responsável pela vida da língua. O verbo pode remeter o ouvinte ou leitor a ações ou a estados. Mais: pode fazer ambos ao mesmo tempo. Muita gente não considera isso fácil (olha aí: considerar é ação; fácil é estado). O mesmo verbo pode dar coloridos diferentes ao sentido, dependendo de sua natureza. Veja-se, por exemplo, o verbo achar em: "eu acho bom achar o caminho de volta". Para captar seu sentido, é preciso ver a relação que este verbo tem com os termos que o rodeiam.

Do verbo se chega ao seu sujeito (ainda que indeterminado ou oculto), aos seus complementos (objetos) e às suas circunstâncias (os adjuntos). Para quem faz análise sintática, começá-la pela análise do verbo e de sua natureza pode ser a grande saída, não só para a predicação verbal mas também para a predicação nominal ou ambas.

Ele é tão poderoso, que pode até bancar uma oração inteira sem sujeito (que é erroneamente considerado termo essencial). Ele é tão capaz, que pode prescindir de seus objetos e de suas circunstâncias. Ele é tão arraigado ao seu contexto, que se pode constituir um texto inteiro só com verbo, tal como fez Julio Cesar no senado romano, ao dizer "Vim, Vi,Venci" (vini, vidi, vici).

O verbo é como se fosse o grande elo, o grande pacificador, o grande catalisador dos termos de uma oração. Como se, por ele, quase todas as demais relações se estabelecessem. Ele é assim como a gente na vida cotidiana: pode facilitar ou complicar as relações. A sintaxe da nossa vida passa necessariamente pelas relações que estabelecemos e mantemos com outras pessoas, fatos e pensamentos.


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Parece, mas não é - falso cognato



No mês passado, tive a feliz oportunidade de conhecer um dos locais que eu mais almejava desde minha infância, desde que passei a ter alguma noção de geografia internacional: o Chile. Embora eu lesse em espanhol - dificuldade que tive de superar na época do doutorado -, sabia que alguma dificuldade me apanharia de surpresa. A língua, seja ela qual for, sempre nos apronta situações que nos deixam, no mínimo, confusos (e muitas vezes isso se dá na própria língua materna). Isso fica mais intenso quando se trata de falsos cognatos.

Nas quatro horas de voo, enquanto minhas filhas dormiam, me dediquei a ler um livro desses de autoajuda linguística - uma lição a cada 15 minutos. Li atentamente os dez capítulos do livro, que eram rápidos, práticos e divididos por situações cotidianas. Fiquei preocupado com os escorregões que sempre levamos com os falsos cognatos, aquelas palavras que parecem uma coisa, mas são outra. Não conhecia falsos cognatos da língua espanhola em relação à nossa.

Me cerquei de um cuidado: lembrar dos "false friends" que havia aprendido no inglês dos tempos de faculdade (meu Deus!!! lá se vão 20 anos...). Será que os falsos cognatos são universais? Se fossem, me salvariam a pátria no Chile, porque sei alguns da língua de Shakespeare: Actually, College, Diversion (esse é pura maldade), Exquisit... e outros tantos que tentei lembrar agora por ordem alfabética. Mas, sabe como é: 20 anos se passaram desde que sistematizei este conhecimento.

Bom: Exquisit era um ponto em comum. Um falso cognato também no espanhol. Eu estranhei quando minha filha me mostrou um rótulo de suco que dizia que aquele era um dos mais "exquisitos". Lógico que não estariam fazendo propaganda contrária ao próprio produto. Logo pensei: falso cognato. Peguei meu dicionário e procurei. Em espanhol, a palavra "exquisito" significa "requintado, refinado, agradável, de boa qualidade...".

Do "exquisito", passei a outros. Custei acreditar, mas: aceitar = passar azeite; borracha = bêbada, cueca = principal dança no Chile!!!, Diseño = projeto, embarazada = grávida, frente = testa, gracioso = engraçado,
latir = bater do coração, pelo = cabelo, rico = encantador, tapa = aperitivo (quieres un tapa, señor?), zurdo = canhoto - pô... /z/ soa como /s/. Então Zurdo e embaraZada, se leem Surdo e embaraçada.

Pois eu me vi embaraçado muitas vezes no Chile e devo ter falado muita bobagem nas minhas tentativas de dominar a língua castelhana. Hoje, lembro dos acontecimentos e dou muita risada. Opa! Rizada é um falso cognato, que significa "enrolada". Pera, pera: se eu disser que estou enrolado, em espanhol, sabe o que significa?